Marilena Chauí (profª da USP e autora de vários livros)
(Fonte: Filosofia, Ed. Ática, São Paulo, ano 2000, pág. 83-87)
Freud escreveu que, no transcorrer da modernidade, os humanos foram feridos
três vezes e que as feridas atingiram o nosso narcisismo, isto é, a bela
imagem que possuíamos de nós mesmos como seres conscientes racionais e com a
qual, durante séculos, estivemos encantados. Que feridas foram essas?
A primeira foi a que nos infligiu Copérnico, ao provar que a Terra não
estava no centro do Universo e que os homens não eram o centro do mundo.
A
segunda foi causada por Darwin, ao provar que os homens descendem de um
primata, que são apenas um elo na evolução das espécies e não seres
especiais, criados por Deus para dominar a Natureza.
A terceira foi causada
por Freud com a psicanálise, ao mostrar que a consciência é a menor parte e
a mais fraca de nossa vida psíquica.
Na obra Cinco ensaios sobre a psicanálise, Freud escreve:
"A Psicanálise propõe mostrar que o Eu não somente não é senhor na sua
própria casa, mas também está reduzido a contentar-se com informações raras
e fragmentadas daquilo que se passa fora da consciência, no restante da vida
psíquica... A divisão do psíquico num psíquico consciente e num psíquico
inconsciente constitui a premissa fundamental da psicanálise, sem a qual ela
seria incapaz de compreender os processos patológicos, tão freqüentes quanto
graves, da vida psíquica e fazê-los entrar no quadro da ciência... A
psicanálise se recusa a considerar a consciência como constituindo a
essência da vida psíquica, mas nela vê apenas uma qualidade desta, podendo
coexistir com outras qualidades e até mesmo faltar. "
A psicanálise - Freud era médico psiquiatra. Seguindo os médicos de sua
época, usava a hipnose e a sugestão no tratamento dos doentes mentais, mas
sentia-se insatisfeito com os resultados obtidos.
Certa vez, recebeu uma paciente, Ana O., que apresentava sintomas de
histeria, isto é, apresentava distúrbios físicos (paralisias, enxaquecas,
dores de estômago) sem que houvesse causas físicas para eles, pois eram
manifestações corporais de problemas psíquicos.
Em lugar de usar a hipnose e a sugestão, Freud usou um procedimento novo:
fazia com que Anna relaxasse num divã e falasse.
Dizia a ela palavras soltas e pedia-lhe que dissesse a primeira palavra que
lhe viesse à cabeça ao ouvir a que ele dissera - posteriormente, Freud
denominaria esse procedimento de "técnica de associação livre".
Freud percebeu que, em certos momentos, Anna reagia a certas palavras e não
pronunciava aquela que lhe viera à cabeça, censurando-a por algum motivo
ignorado por ela e por ele.
Notou também que, em outras ocasiões, depois de
fazer a associação livre de palavras, Anna ficava muito agitada e falava
muito. Observou que, certas vezes, algumas palavras a faziam chorar sem
motivo aparente e, outras vezes, a faziam lembrar-se de fatos da infância,
narrar um sonho que tivera na noite anterior.
Pela conversa, pelas reações da paciente, pelos sonhos narrados e pelas
lembranças infantis, Freud descobriu que a vida consciente de Anna era
determinada por uma vida inconsciente, que tanto ela quanto ele
desconheciam.
Compreendeu também que somente interpretando as palavras, os
sonhos, as lembranças e os gestos de Anna chegaria a essa vida inconsciente.
Freud descobriu, finalmente, que os sintomas histéricos tinham três
finalidades:
contar indiretamente aos outros e a si mesma os sentimentos
inconscientes;
punir-se por ter tais sentimentos;
realizar, pela doença e pelo sofrimento, um desejo inconsciente
intolerável.
Tratando de outros pacientes, Freud descobriu que, embora conscientemente
quisessem a cura, algo neles criava uma barreira, uma resistência
inconsciente à cura.
Por quê? Porque os pacientes sentiam-se interiormente ameaçados por alguma
coisa dolorosa e temida, algo que haviam penosamente esquecido e que não
suportavam lembrar. Freud descobriu, assim, que o esquecimento consciente
operava simultaneamente de duas maneiras:
como resistência à terapia;
sob a forma da doença psíquica, pois o inconsciente não esquece e
obriga o esquecido a reaparecer sob a forma dos sintomas da neurose e da
psicose.
Desenvolvendo com outros pacientes e consigo mesmo esses procedimentos e
novas técnicas de interpretação de sintomas, sonhos, lembranças,
esquecimentos, Freud foi criando o que chamou de análise da vida psíquica ou
psicanálise, cujo objeto central era o estudo do inconsciente e cuja
finalidade era a cura de neuroses e psicoses, tendo como método a
interpretação e como instrumento a linguagem (tanto a linguagem verbal das
palavras quanto a linguagem corporal dos sintomas e dos gestos).
A vida psíquica - Durante toda sua vida, Freud não cessou de reformular a
teoria psicanalítica, abandonando alguns conceitos, criando outros,
abandonando algumas técnicas terapêuticas e criando outras. Não vamos, aqui,
acompanhar a história da formação da psicanálise, mas apresentar algumas de
suas principais idéias e inovações.
A vida psíquica é constituída por três instâncias, duas delas inconscientes
e apenas uma consciente: o id, o superego e o ego (ou o isso, o super-eu e o
eu). Os dois primeiros são inconscientes; o terceiro, consciente.
O id é formado por instintos, impulsos orgânicos e desejos inconscientes, ou
seja, pelo que Freud designa como pulsões.
Estas são regidas pelo princípio
do prazer, que exige satisfação imediata. O id é a energia dos instintos e
dos desejos em busca da realização desse princípio do prazer. É a libido.
Instintos, impulsos e desejos, em suma, as pulsões, são de natureza sexual e
a sexualidade não se reduz ao ato sexual genital, mas a todos os desejos que
pedem e encontram satisfação na totalidade de nosso corpo.
Freud descobriu três fases da sexualidade humana que se diferenciam pelos
órgãos que sentem prazer e pelos objetos ou seres que dão prazer.
Essas
fases se desenvolvem entre os primeiros meses de vida e os 5 ou 6 anos,
ligadas ao desenvolvimento do id:
A fase oral, quando o desejo e o prazer localizam-se primordialmente na boca
e na ingestão de alimentos e o seio materno, a mamadeira, a chupeta, os
dedos são objetos do prazer;
A fase anal, quando o desejo e o prazer localizam-se primordialmente nas
excreções e as fezes, brincar com massas e com tintas, amassar barro ou
argila, comer coisas cremosas, sujar-se são os objetos do prazer;
E a fase genital ou fase fálica, quando o desejo e o prazer localizam-se
primordialmente nos órgãos genitais e nas partes do corpo que excitam tais
órgãos.
Nessa fase, para os meninos, a mãe é o objeto do desejo e do prazer; para as
meninas, o pai.
No centro do id, determinando toda a vida psíquica, encontra-se o que Freud
denominou de complexo de Édipo, isto é, o desejo incestuoso pelo pai ou pela
mãe.
É esse o desejo fundamental que organiza a totalidade da vida psíquica e
determina o sentido de nossas vidas.
O superego, também inconsciente, é a censura das pulsões que a sociedade e a
cultura impõem ao id, impedindo-o de satisfazer plenamente seus instintos e
desejos.
É a repressão, particularmente a sexual. Manifesta-se à consciência
indiretamente, sob a forma da moral, como um conjunto de interdições e de
deveres, e por meio da educação, pela produção da imagem do "eu ideal" isto
é, da pessoa moral, boa o virtuosa.
O superego ou censura desenvolve-se num
período que Freud designa como período de latência, situado entre os 6 ou 7
anos e o início da puberdade ou adolescência.
Nesse período, forma-se nossa
personalidade moral e social, de maneira que, quando a sexualidade genital
ressurgir, estará obrigada a seguir o caminho traçado pelo superego.
O ego ou o eu é a consciência, pequena parte da vida psíquica, submetida aos
desejos do id e à repressão do superego.
Obedece ao princípio da realidade,
ou seja, à necessidade de encontrar objetos que possam satisfazer ao id sem
transgredir as exigências do superego.
O ego, diz Freud, é "um pobre
coitado", espremido entre três escravidões:
os desejos insaciáveis do id,
a severidade repressiva do superego
e os perigos do mundo exterior.
Por esse motivo, a forma fundamental da existência para o ego é a angústia.
Se se submeter ao id, torna-se imoral e destrutivo; se se submeter ao
superego, enlouquece de desespero, pois viverá numa insatisfação
insuportável; se não se submeter à realidade do mundo, será destruído por
ele.
Cabe ao ego encontrar caminhos para a angústia existencial.
Estamos
divididos entre o princípio do prazer (que não conhece limites) e o
princípio da realidade (que nos impõe limites externos e internos).
Ao ego-eu, ou seja, à consciência, é dada uma função dupla: ao mesmo tempo
recalcar o id, satisfazendo o superego, e satisfazer o id, limitando o
poderio do superego.
A vida consciente normal é o equilíbrio encontrado pela
consciência para realizar sua dupla função.
A loucura (neuroses e psicoses)
é a incapacidade do ego para realizar sua dupla função, seja porque o id ou
o superego são excessivamente fortes, seja porque o ego é excessivamente
fraco.
O inconsciente, em suas duas formas, está impedido de manifestar-se
diretamente à consciência, mas consegue fazê-lo indiretamente.
A maneira
mais eficaz para a manifestação é a substituição, isto é, o inconsciente
oferece à consciência um substituto aceitável por ela e por meio do qual ela
pode satisfazer o id ou o superego.
Os substitutos são imagens (isto é,
representações analógicas dos objetos do desejo) e formam o imaginário
psíquico, que, ao ocultar e dissimular o verdadeiro desejo, o satisfaz
indiretamente por meio de objetos substitutos (a chupeta e o dedo, para o
seio materno; tintas e pintura ou argila e escultura para as fezes, uma
pessoa amada no lugar do pai ou da mãe).
Além dos substitutos reais (chupeta, argila, pessoa amada), o imaginário
inconsciente também oferece outros substitutos, os mais freqüentes sendo os
sonhos, os lapsos e os atos falhos.
Neles, realizamos desejos inconscientes,
de natureza sexual. São a satisfação imaginária do desejo.
Alguém sonha, por exemplo, que sobe uma escada, está num naufrágio ou num
incêndio. Na realidade, sonhou com uma relação sexual proibida.
Alguém quer
dizer uma palavra, esquece-a ou se engana, comete um lapso e diz uma outra
que nos surpreende, pois nada tem a ver com aquela que se queria dizer.
Realizou um desejo proibido. Alguém vai andando por uma rua e, sem querer,
torce o pé e quebra o objeto que estava carregando. Realizou um desejo
proibido.
A vida psíquica dá sentido e coloração afetivo sexual a todos os objetos e a
todas as pessoas que nos rodeiam e entre os quais vivemos.
Por isso, sem que
saibamos por que, desejamos e amamos certas coisas e pessoas, odiamos e
tememos outras.
As coisas e os outros são investidos por nosso inconsciente
com cargas afetivas de libido.
É por esse motivo que certas coisas, certos
sons, certas cores, certos animais, certas situações nos enchem de pavor,
enquanto outros nos enchem de bem-estar, sem que o possamos explicar.
A
origem das simpatias e antipatias, amores e ódios, medos e prazeres está em
nossa mais tenra infância, em geral nos primeiros meses e anos de nossa
vida, quando se formam as relações afetivas fundamentais e o complexo de
Édipo.
Essa dimensão imaginária de nossa vida psíquica - substituições, sonhos,
lapsos, atos falhos, prazer e desprazer com objetos e pessoas, medo ou
bem-estar com objetos ou pessoas - indica que os recursos inconscientes para
surgir indiretamente à consciência possuem dois níveis:
o nível do conteúdo manifesto (escada, mar e incêndio, no sonho; a palavra
esquecida e a pronunciada, no lapso; pé torcido ou objeto partido, no ato
falho; afetos contrários por coisas e pessoas)
e o nível do conteúdo latente, que é o conteúdo inconsciente real e oculto
(os desejos sexuais).
Nossa vida normal se passa no plano dos conteúdos manifestos e, portanto, no
imaginário.
Somente uma análise psíquica e psicológica desses conteúdos, por
meio de técnicas especiais (trazidas pela psicanálise), nos permite decifrar
o conteúdo latente que se dissimula sob o conteúdo manifesto.
Além dos recursos individuais cotidianos; que nosso inconsciente usa para
manifestar-se, e além dos recursos extremos e dolorosos usados na loucura
(nela, os recursos são os sintomas), existe um outro recurso, de enorme
importância para a vida cultural e social, isto é, para a existência
coletiva. Trata-se do que Freud designa com o nome de sublimação.
Na sublimação, os desejos inconscientes são transformados em uma outra
coisa, exprimem-se pela criação de uma outra coisa: as obras de arte, as
ciências, a religião, a filosofia, as técnicas, as instituições sociais e as
ações políticas.
Artistas, místicos, pensadores, escritores, cientistas,
líderes políticos satisfazem seus desejos pela sublimação e, portanto, pela
realização de obras e pela criação de instituições religiosas, sociais,
políticas, etc.
Porém, assim como a loucura é a impossibilidade do ego para realizar sua
dupla função, também a sublimação pode não ser alcançada e, em seu lugar,
surgir uma perversão social ou coletiva, uma loucura social ou coletiva.
O
nazismo é um exemplo de perversão, em vez de sublimação.
A propaganda, que
induz em nós falsos desejos sexuais pela multiplicação das imagens de
prazer, é outro exemplo de perversão ou de incapacidade para a sublimação.
O inconsciente, diz Freud, não é o subconsciente.
Este é aquele grau da
consciência como consciência passiva e consciência vivida não-reflexiva,
podendo tornar-se plenamente consciente. O inconsciente, ao contrário,
jamais será consciente diretamente, podendo ser captado apenas indiretamente
e por meio de técnicas especiais de interpretação desenvolvidas pela
psicanálise.
A psicanálise descobriu, assim, uma poderosa limitação às pretensões da
consciência para dominar e controlar a realidade e o conhecimento.
Paradoxalmente, porém, nos revelou a capacidade fantástica da razão e do
pensamento para ousar atravessar proibições e repressões e buscar a verdade,
mesmo que para isso seja preciso desmontar a bela imagem que os seres
humanos têm de si mesmos.
Longe de desvalorizar a teoria do conhecimento, a psicanálise exige do
pensamento que não faça concessões às idéias estabelecidas, à moral vigente,
aos preconceitos e às opiniões de nossa sociedade, mas que os enfrente em
nome da própria razão e do pensamento.
A consciência é frágil, mas é ela que decide e aceita correr o risco da
angústia e o risco de desvendar e decifrar o inconsciente.
Aceita e decide
enfrentar a angústia para chegar ao conhecimento de que somos um caniço
pensante, como disse o filósofo Pascal.
PERGUNTAS
Por que a descoberta freudiana do inconsciente foi mais uma ferida
no narcisismo (1) ocidental?
Como Freud chegou ao conceito de inconsciente? Como ele descreve a
vida psíquica?
Por que o ego (consciência) é um "pobre coitado"?
Como opera o inconsciente (id e superego)?
Qual a função dos sonhos, dos sintomas e da sublimação?
(1) Narcisismo - Conta o mito que o jovem Narciso, belíssimo, nunca tinha
visto sua própria imagem. Um dia, passeando por um bosque, viu um lago.
Aproximou-se e viu nas águas um jovem de extraordinária beleza e pelo qual
apaixonou-se perdidamente.
Desejava que o outro saísse das águas e viesse ao
seu encontro, mas como o outro parecei recusar-se a sair do lago, Narciso
mergulhou nas águas, foi às profundezas à procura do outro que fugia,
morrendo afogado.
Narciso morreu de amor por si mesmo, ou melhor, de amor
por sua própria imagem ou pela auto-imagem.
O narcisismo é o encantamento e
a paixão que sentimos por nossa própria imagem ou por nós mesmos porque não
conseguimos diferenciar o eu e o outro.