Psicopatologias

da sexualidade

 

 

AMAP – Belo Horizonte
Associação Mineira de Psicanálise



Mário Rubens Lúcio da Fonseca RA: 0330-12


Trabalho do módulo
PSICOPATOLOGIAS DA SEXUALIDADE


Professora: Gisele Nogueira Parreira Carmo

Prefácio
O presente trabalho, de cunho psicanalítico, mistura ficção e realidade.


Baseado no filme “OS CONTOS PROIBIDOS DO MARQUES DE SADE”, do diretor Philip Kaufman; e no livro “HOLOCAUSTO BRASILEIRO”, da jornalista Daniela Arbex, do jornal Tribuna de Minas.


Alguns personagens do filme foram mantidos com o nome original e outros tiveram seus nomes modificados, como é o caso do Marques de Sade, aqui apresentado como Sheik-Sadí e de Mademoiselle Madelaine LeClerc, a camareira, que surge no texto com o nome de Madalena.


O “Asilo Charenton para Loucos”, onde se passa no filme a história do Marquês de Sade, é contextualizado neste trabalho pela dura realidade do “Colônia”, maior hospício do Brasil, situado na cidade de Barbacena, MG.


Os dados referentes ao Colônia foram extraídos do trabalho de pesquisa da jornalista Daniela Arbex, contidos no citado livro.


Algumas frases atribuídas ao Marquês de Sade foram retiradas do filme, outras foram apenas inseridas, mas pertencem originalmente a outros autores. Sendo assim, para que se atribua os devidos créditos autorais, temos: as três frases em “O sapateiro feliz” (capítulo: “Barbacena, 31 de julho de 1937”) são de autoria do jornalista e escritor brasileiro Nelson Rodrigues.

 

No último capítulo (“Barbacena, 30 de outubro de 1937”), a letra da música é de Sueli Aparecida Rezende, interna do Colônia. “Sueli teve sua filha roubada de seus braços.

 

Os prontuários do hospital revelam que, nos vinte e dois anos seguintes ao parto, ela se lembrou de todos os aniversários da filha. José Manuel de Rosa Lucinda, pessoa a quem a letra se refere, foi um dos gerentes administrativos linha-dura do hospital nos anos 70.

 

Sua música continua sendo até hoje um hino no hospital. As estrofes ritmadas fazem uma clara crítica ao modelo manicomial e ao isolamento que aprisionava a alma”.


As análises, diálogos, interpretações e colocações são frutos da pesquisa do autor deste trabalho.


O enredo deste trabalho se passa nos anos 30, durante a implantação do Estado Novo pelo governo de Getúlio Vargas. Trata-se de cartas trocadas entre Gregori, psicanalista de São Paulo e sua namorada, também psicanalista, que vivia na cidade de Santos, litoral paulista.

 

As personagens, assim como suas histórias, são fictícias e qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.

 

Os nomes escolhidos para compor as personagens do texto não são de todo casuais.

 

Jean Portugal e José Lourenço são colegas de formação do autor. Ader Alves de Assis, que aparece no texto como o “homem dos 3 As”, é uma homenagem ao nosso querido professor Ader, membro do Conselho de Ética da AMAP.

 

Já o nome Juliette é uma personagem do próprio Marquês de Sade, aqui apresentada como namorada de Gregori.

 

 O nome Gregori, por sua vez, é um anagrama, e como tal, o autor não revela o seu significado, deixando à cargo do leitor o desafio da interpretação.

 

O número da caixa postal de Gregori 0330-12 é o número de registro do autor como aluno da AMAP.
Boa leitura!





Dedicado aos 60 mil mortos no maior hospício do Brasil.
Barbacena, 13 de junho de 1937.


Cara Juliette,


Faz alguns dias me encontro na cidade de Barbacena e estou trabalhando no Colônia, até posso imaginar seu espanto ao saber dessa noticia. Confesso que eu também nunca me imaginei trabalhando em um hospital psiquiátrico (se bem que este lugar pode ser chamado de qualquer coisa menos de hospital). Ainda mais agora que estava indo tudo tão bem com meu consultório na Avenida Paulista. Se lembra o quanto eu estava animado em nosso último encontro?!


Quanto a minha súbita vinda à região da Serra da Mantiqueira, a ordem partiu diretamente do presidente Getúlio Vargas e, embora tenha argumentado ser um psicanalista e não um psiquiatra – o que me parecia mais apropriado por se tratar de um hospício –, meus argumentos não serviram para absolutamente nada. Fui levado ao Rio de Janeiro para receber as instruções quanto à tarefa que deveria realizar e não me restou outra escolha se não fazer as malas, transferir meus pacientes para o Dr Jean Portugal, trancar o apartamento e pegar um ônibus imediatamente com destino à Barbacena. Enfim, cumpro um imperativo do presidente de República, que cada vez mais me lembra Napoleão Bonaparte. Sabe o que isso significa: “aos amigos tudo, aos inimigos a lei”.

 

Estamos vivendo sob o código de Hamurabi!

 

Quando tratei Jandira, a filha de Vargas, não poderia supor que o presidente ficaria eternamente grato a minha pessoa, ou seja, não me esqueceria jamais.

 

O fato é que ninguém consegue demover daquela cabeça grande, dura e oca, a idéia fixa e pertinaz de que a psicanálise dá jeito em tudo, ou melhor, em todos. Quanto a isso sabemos que não é bem assim!


Fui trazido para cá nestas condições surreais para avaliar um paciente em especial. Getúlio anda muito incomodado com o tal Sheik, ou melhor, com o sucesso dos seus “contos proibidos”. Sabe de quem eu estou falando não é?!

 

Do subversivo Sheik-Sadí! O inimigo público número um dos getulistas! Getúlio está obcecado em fazer este homem calar a boca, ou melhor, conter à pena.

 

Depois de seu último livro fazendo claras referências as amantes de Getúlio, parece que nosso “imperador” não descansará enquanto este “leopardo das arábias” não estiver domesticado como um “dócil gatinho siamês”.

 

Acontece que as respectivas esposas de Vargas e de Sadí, Darcy e Renné, são amigas pessoais, além de Renné ser uma dama da alta sociedade paulista e pessoa muito influente, motivos estes que levaram Getúlio a ser “quase” condescendente com o pobre homem.

 

Se não fosse por isso a cabeça do Sheik já teria sido entregue à Vargas em uma bandeja.

 

E foi por este motivo esdrúxulo que fui trazido para esse lugar, tão longe de você e das noites paulistanas, para tratar o Sheik-Sadí à luz da psicanálise.

 

A missão me foi passada pelo secretário direto do presidente, com ordens expressas de iniciar o tratamento de imediato e às custas do Estado Novo.

 

Foi por isso minha querida Juli, que não pude sequer me despedir de você, por uma forte constrição das forças repressoras do governo.

 

Mesmo assim peço que me perdoe. Segundo o secretário, Vargas foi categórico ao dizer que se a psicanálise não der jeito em Sadí, ele mesmo o fará, ou seja, para nosso ilustre personagem só restam dois caminhos possíveis: o divã ou a lobotomia.

 

Estou tentando mantê-lo no divã, embora desconfie do triste fim que o aguarda. Como se dizia antigamente: “pelo andar da carruagem já se sabe o que vem dentro”.


Estava ansioso para lhe dar estas notícias, em meio a tantos rumores de revolução e pessoas desaparecendo misteriosamente pelo país afora, achei que caso eu sumisse sem deixar vestígios, haveria de lhe trazer preocupações desnecessárias.

 

Espero que seja curtíssima minha estadia aqui no Colônia, pois não vejo a hora de voltar pra casa e cair direto nos seus braços. Neste momento me vem à nítida imagem de nós dois andando pelas praias de Santos no final da tarde.

 

Chego até mesmo a ver o seu sorriso e sentir o cheiro do mar. Ficarei aguardando ansiosamente sua resposta.


Com muita saudade,
Gregori
Ps. Retorne para a caixa postal: 0330-12.

Barbacena, 25 de junho de 1937.


Querida Juliette,


Adorei receber sua carta, reli varias vezes. Só agora me dei conta do quanto sua letra é linda, ao contrario da minha. Seu perfume ficou em minhas mãos por horas e reavivou minhas lembranças. Que bom que você compreendeu os motivos que me levaram a sair de São Paulo, sem ao menos me despedir de você. A certeza que você me espera é o que aquece meu coração nestas noites geladas de inverno na região da Cantareira.


Agora posso entender melhor o por que Barbacena é chamada de “capital dos loucos”.

 

O Colônia conta hoje com cinco mil internos, a maioria psicóticos, esquizofrênicos, paranóicos e pervertidos. Desconfio que muitos destes enlouqueceram depois que chegaram aqui. São ex prostitutas de São João Del Rei, a maioria delas trazidas para cá depois de esfaquearem algum filho da elite ou figurão do café por não pagarem o valor estipulado pelo programa; filhas de fazendeiros que se tornaram mães solteiras e acabaram sendo enxotadas de casa e mantidas aqui; prisioneiros políticos contrários a política populista de Vargas, que por azar ou sorte escaparam do fuzilamento e vieram parar neste fim de mundo. Enfim, Juli, no Colônia cada um tem sua história de vida, um motivo que os trouxe para cá e um triste destino em comum: vegetar neste buraco até que a morte os liberte.


A situação é calamitosa, duas vezes por semana o “trem dos loucos” (é como se chama por aqui) chega carregando centenas de pessoas vindas do país inteiro para serem despejadas e esquecidas no Colônia. Os pacientes, que na verdade são prisioneiros, morrem de frio, de fome, de doença. Morrem também de choque.

 

Em alguns dias, os eletrochoques são tantos e tão fortes, que a sobrecarga derruba a rede do município. O que acontece no Colônia é a desumanidade, a crueldade planejada. No hospício, tira-se o caráter humano de uma pessoa, e ela deixa de ser gente.

 

É permitido andar nu e comer bosta, mas é proibido o protesto qualquer que seja a sua forma. Homens, mulheres e crianças, às vezes, comem ratos, bebem esgoto ou urina, dormem sobre o capim, são espancados e violados.

 

Crianças, na mais tenra idade são retiradas de suas mães e vendidas como mercadorias.


Os corpos em transformados indigentes são negociados por cerca de cinqüenta cruzeiros cada um. O fornecimento de peças anatômicas, aliás, dobra nos meses de inverno, época em que ocorrem mais mortes.

 

Só a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) adquiriu 543 corpos em uma década. Já a UFJF foi responsável pela compra de 67 cadáveres entre fevereiro e maio deste ano. Segundo um levantamento que fiz, cerca de 17 universidades recorrem ao Colônia para adquirirem peças anatômicas. Também são realizadas aqui experiências com lobotomia. Um verdadeiro inferno de Dante.


A opinião pública não sabe ou simplesmente prefere não saber de nada. Claro que eu tento fazer minha parte para minimizar a situação aqui dentro, o problema é que eu não sei como minimizar a situação dentro de mim.

 

Além do Sheik, que atendo todos os dias pontualmente às 10 h, também tenho atendido alguns funcionários e internos não psicotizados, mas isso por conta própria, foi a maneira que eu encontrei de me sentir útil em meio a este verdadeiro holocausto humano.


Lembre-se de mim em suas orações,


Boa noite!
Gregori
Ps. Trouxe uma foto sua e durmo todas as noites olhando pra você.


Barbacena, 05 de julho de 1937
Querida Juli,


A saudade de você me comprime o peito. Preciso muito de sua ajuda no caso do Sheik-Sadí. Este homem é de longe o paciente mais intrigante que já atendi em toda minha carreira. Precisamos discutir o caso. Vou lhe passar a ficha:


Ficha do paciente:
Nome: Sadí Abdul-Wadud
Significado do nome: O servo do Amor
Popularmente conhecido como: Sheik-Sadí
Brasileiro, descendente de libaneses, da casta dos comerciantes. O pai, Sr Salim, possui uma tradicional loja de tecidos no Braz, São Paulo.


Profissão: escritor
Religião: ateu convicto
Aos 16 anos violou uma criada com um crucifixo. Seis meses depois mutilou uma prostituta. Cortou-lhe a carne com uma lamina e cauterizou as feridas com cera quente. Sobre si, ele mesmo dá a sentença: “homo perversio, uma espécie que cresce no cativeiro”.
-------------------------------------------------------------------------------
Em nossa última sessão, retirou uma garrafa de vinho que trazia enrustida no paletó e ao abri-la disse-me estendendo a taça: “A conversa, assim como certas partes do corpo, desliza melhor quando lubrificadas.”


Sheik-Sadí está escrevendo “Justine”, sua mais nova criação literária. Tenho em mãos o primeiro capítulo que ele fez questão de me mostrar, tomei nota da introdução: “As jovens donzelas do mundo: libertem-se da tirania da virtude e sintam o sabor, sem vergonha, dos prazeres da carne. O poder masculino reside em um punho cerrado, mas o poder de uma mulher está em outro lugar: na cavidade de veludo que tem entre as coxas”.


Como devo tratá-lo, Juli? Será um caso ao alcance da psicanálise? Ficarei aguardando suas considerações.


Com carinho,
Gregori.
Ps. Tome um bom vinho por mim.
Barbacena, 17 de julho de 1937.
Querida Juliette,
Saudades, meu bem!


Li atentamente seus comentários sobre o Sheik-Sadí. Talvez você tenha razão em considerá-lo como um psicótico. Mas eu, particularmente, tenho minhas reservas.

 

Não discordo quanto aos traços de caráter pervertido e sádico. Isso é mais evidente, claro.

 

Também me parece que estamos de acordo quanto a obsessão dele por sexo ser sublimada pela compulsão que sente em escrever.

 

Entretanto, vejo que há uma outra motivação também, não sei até que ponto consciente, de provocar as autoridades religiosas e políticas com o conteúdo que escreve, ou seja, neste caso a questão sexual seria apenas uma espécie de pano de fundo para chocar a sociedade.


Você coloca em sua análise, transcrevo com suas palavras: “Não se trata apenas de um sexólatra ou escritor excêntrico. Em sua ficha constam crimes de estupro e tortura.

 

Se houver oportunidade, o Sheik passa da imaginação ao ato, o que é característica dos psicopatas. É um caso para a psiquiatria, não para a psicanálise.”

 

Mas ao mesmo tempo, entenda bem, acho precipitado colocar tal diagnostico na ficha dele. Me soa como rótulo e você sabe o que eu penso sobre os rótulos. Por outro lado, mesmo que eu seguisse esta linha de raciocínio, ainda assim teria que me questionar até que ponto eu não estaria dando o caso por encerrado só pra voltar mais depressa pra casa (e pra você!).


Quanto ao passar da imaginação ao ato, que foi uma outra colocação que você fez, aqui no Colônia ele teve varias oportunidades de passar ao ato e nunca transgrediu. Seria por pura manipulação? Pode ser que sim! Mas perceba, Juli, que sempre restam questionamentos. E se há dúvidas, poderemos ser induzidos ao erro.

 

O psicanalista é o médico da alma, não podemos errar. Pelo menos não sem antes buscar a acertividade. Não me cabe fazer diagnósticos, mas meu prognostico precisa ser preciso. Estamos falando de um ser humano, diferente e semelhante como qualquer um de nós. Além disso, este caso pode me ser de grande valia no futuro. Sheik-Sadí é um verdadeiro laboratório de pesquisa com farto material psicanalítico e sinto que devo aproveitar esta oportunidade para observar melhor e estudar mais detidamente o caso.


Saudade, saudades, saudades!
Gregori.


Ps: Acho tão saudável estas nossas discordâncias. E você?


Barbacena, 31 de julho de 1937.
Juli,
Meu bem!
Não é que eu goste de contrariar você, mas é que precisamos aprender a expor e não impor idéias. Com relação a Sadí, temos opiniões convergentes e divergentes e penso que isso seja algo muito positivo. Por isso eu disse que precisava de você para “discutirmos” o caso.

 

E vamos continuar mantendo estas discussões porque estou precisando disso. Não há um psicanalista sequer em um raio de 150 km de onde estou. À partir de hoje lhe enviarei duas cartas. Uma como seu namorado, outra como seu colega de profissão, ok?!


Você perguntou o que foi que eu fiz para que o Sheik-Sadí aceitasse fazer análise comigo? Absolutamente nada, acredite, apenas me apresentei como psicanalista. Sadí se diz um admirador de Freud, segundo ele, o pai da psicanálise demoliu de maneira lógica todo o arcabouço falso das religiões em “O futuro de uma ilusão” e o “O mal estar na civilização”. Trata-se de um ateu convicto, disse-me: “a religião é a maior das neuroses e o cristianismo a maior das utopias”.


Conversa comigo de igual pra igual, como se fossemos dois psicanalistas. É um homem de leitura. Não pára no divã um só minuto e o tempo todo fica andando de um lado para o outro da sala.


O contato dele com os outros internos é restrito por determinação do padre Coulmier. Ele sai do quarto em momentos específicos: banho de sol às 8 h; psicanálise às 10 h; para os ensaios de teatro das 14 h às 17 h. As refeições ele faz no quarto (que é de uso restrito dele, um privilégio por aqui).


A idéia do teatro foi do padre Coulmier também. Ontem assisti uma peça escrita e dirigida pelo Sheik: “O sapateiro feliz”. Anotei algumas frases, confira:


1- “A adúltera é a mais pura porque está salva do desejo que apodrecia nela”.


2- “A prostituta só enlouquece excepcionalmente. A mulher honesta, sim, é que, devorada pelos próprios escrúpulos, está sempre no limite, na implacável fronteira”.


3- “É preciso ir ao fundo do ser humano. Ele tem uma face linda e outra hedionda. O ser humano só se salvará se, ao passar a mão no rosto, reconhecer a própria hediondez”.

Devo admitir que me diverti muito com a peça!
Quando perguntei sobre sua motivação em escrever, disse-me: “Não criei este mundo, só conto suas estórias. Escrevo o que vejo, do cortejo à guilhotina. Estamos todos na fila, esperando o golpe da lamina”.


Indiscutivelmente trata-se de um homem inteligente, carismático, envolvente, sedutor e manipulador. Com estas características é praticamente a personificação do diabo! Mas vou seguir sua sugestão, serei com ele o mais freudiano possível: livre associação de idéias, sempre!.

 

Quanto ao material onírico, infelizmente não há nada a ser analisado, o Sheik não se lembra dos sonhos.
Com carinho,
Gregori.


Ps. Não esqueci o que você me pediu, assim que o livro “Justine” estiver pronto, envio uma cópia autografada pelo autor especialmente para você.

Barbacena, 17 de agosto de 1937.
Á
Juliette, minha didata.
Gostou do tom mais formal da carta? Lembra que eu lhe falei que à partir de agora lhe escreveria duas cartas, uma como seu namorado, outra como seu colega de profissão?! Então vou guardar todo o meu romantismo para me expressar na carta que escreverei em seguida à essa.

 

Mas aposto que antes mesmo de ler o que te escrevo, você irá devorar o livro do Sheik-Sadí que lhe envio junto com as correspondências. Se estou certo quanto a isso, a esta altura você deve estar rindo da minha observação porque já terá lido o livro primeiro. E então, o que achou? O Sheik tem uma imaginação muito fértil não é mesmo?!.

 

E a dedicatória que ele lhe fez: “Com amor à Juliette: à dama do perfume de avelã!” Levei um susto quando li. Perguntei a ele como sabia que você usava perfume de avelã?! Dessa vez o papel se inverteu e o psicanalista passou a ser ele. Sabe o que ele me respondeu? Nada, apenas sorriu. Depois me achei um idiota, claro que ele sente o perfume das cartas que você me envia, pois sempre guardo a mais recente no bolso da camisa, exatamente para sentir o seu perfume.


Getulio Vargas está uma fera com o lançamento clandestino deste livro. A idéia de trancafiar Sheik-Sadí no Colônia era exatamente para evitar que outra obra de sua lavra viesse à lume. Há uma investigação interna para saber quem facilitou a saída dos manuscritos para que o livro fosse publicado.


Padre Coulmier foi afastado da direção do hospital. Suas atividades agora estão restritas as funções de páraco.


O interventor federal, Royer, me interrogou quanto ao ocorrido. Disse a ele que não sabia de nada, mas mesmo que soubesse não lhe diria, porque a profissão de psicanalista me reserva o direito do “sigilo absoluto”. Você concorda comigo Juli?
Só que eu menti! Evidente que sei quem foi. O nome dela é Madalena, a camareira. Eu também a estou atendendo e quero pedir sua ajuda neste caso também. Sorte a minha ter uma didata como você!


Por falar em Madalena a sessão tem início daqui poucos minutos.
Beijos,
Gregori.


Ps: Sheik-Sadí manifestou desejo em publicar futuramente um conto com seu nome: Juliette.

Barbacena, 31 de agosto de 1937.
Querida Juliette,


A situação no Colônia está mais tensa do que nunca.
Se eu pudesse pegaria um ônibus agora e iria direto para Santos. Sinto muitas saudades de você e da minha vida que por ora está suspensa.


Sheik-Sadí foi trancafiado depois do lançamento de Juli... quero dizer “Justine” por ordens expressas do interventor. Acabei de cometer um ato falho agora, percebeu?


Sem pena, tinta ou papel que possa escrever e sublimar suas fantasias sexuais, passou a praticar “cutting” e a escrever com sangue nos próprios lençóis.

 

Seu estado é deplorável. Sinceramente, estou com pena dele.
Agora eu o atendo na cela! Um horror!


Madalena recolhe os lençóis rabiscados de sangue, transcreve-os e entrega para um certo cavaleiro misterioso que passa por aqui e leva os escritos a um editor clandestino. Ou seja, daqui algumas semanas teremos mais um livro do Sheik circulando pelo mercado negro.

 

Penso que isso será sua gloria e destruição. Gloria porque terá afrontado mais uma vez a Getulio, a Igreja e ao próprio Royer, e destruição porque dessa vez a mão de ferro do presidente não irá poupá-lo de duros castigos. Temo pela vida dele e pela segurança de Madalena.


Essa situação tem me deixado bastante ansioso. Não consigo dormir há varias noites. Estou convencido, sinceramente, que mais louco do que o Sheik é essa sociedade enrustida. Os chamados “normais” vivem dentro de uma hipocrisia sem tamanho, tanto é que os livros dele vendem tanto quanto a bíblia. Quem os compra?

 

As pessoas adoram seus contos proibidos, mas depois o superego as obriga a penitenciar afim de purificarem-se de seus pecados.


Como já havia lhe dito estou analisando Madalena. Uma moça linda, parece uma camponesa de virginal beleza. Paixão declarada do Sheik. Madalena é simples e inteligente. Docemente sensual. Adora ler.

 

Por ser apaixonada pelas obras do Sheik, tornou-se sua cúmplice no esquema dos livros. Na análise tem surgido muito material reprimido.

 

Ela não tem muita consciência ainda, mas tanto deseja o padre Coulmier, como o tal cavaleiro misterioso. O padre representa o pai, a autoridade, a segurança.

 

Foi ele quem a ensinou a ler. Já o cavaleiro representa o ideal de mocidade, a liberdade, o desconhecido.

 

Estou fazendo inferências baseado em seu conteúdo onírico, sempre rico em simbolismos do inconsciente. Em seus sonhos aparecem símbolos fálicos ligados ao cavaleiro e ao padre, como a lança e o crucifixo.

 

Estes objetos sempre lhe parecem grandes e ela tenta carregá-los, mas não consegue. O tamanho dos objetos é compatível com tamanho de seu desejo e do que ela supõe encontrar por baixo das calças de um e da batina do outro.

 

Já a impossibilidade de carregá-los representa a impossibilidade de realizar seus desejos, pois Coulmier é padre, e o tal cavaleiro, embora misterioso, não é exatamente o que poderíamos chamar de cavaleiro solitário, segundo Madalena, trata-se de um homem casado. Seus amores são sempre platônicos, impossíveis.

 

Madalena é uma neurótica. Deliciosamente neurótica. E quando se libertar do que a bloqueia sexualmente, fatalmente irá se entregar ao primeiro homem com quem fizer a transferência erótica.


O que acha, Juli? Ficarei aguardando suas considerações!
Com saudades,
Gregori.

Barbacena, 13 de setembro de 1937.
Minha querida Juli,


Você tinha razão quando me advertiu sobre a contratransferência erótica com relação a Madalena. Temos aqui todos os elementos necessários para que ela aconteça: o erotismo dos contos do Sheik, a sensualidade de Madalena e a minha própria solidão.

 

No início quando li sua carta, resisti. Entrei em mecanismo de defesa. Mas em nossa última sessão os seios de Madalena me saltaram aos olhos muito mais do que suas palavras aos meus ouvidos. Ontem sonhei que estava com vocês duas na praia.

 

Madalena me convidava para entrar no mar, havia ondas e espumas, mas em contrapartida você me chamava para pisar em terra firme. Eu ficava ali entre vocês duas. Quer linguagem do inconsciente mais clara do que essa?! A ilusão contra-transferencial alimentada pelo princípio do prazer versus o ego impulsionado pelo princípio da realidade.

 

E o mais interessante é observarmos estas forças e contra-forças de nossas instâncias psíquicas, agindo à nível inconsciente durante o sono, produzindo o material onírico passivo de ser analisado.

 

A psicanálise é mesmo fantástica. Devemos isso a Freud! A contratransferência erótica é como o canto da sereia, sem supervisão didática nos deixamos envolver sem perceber. Obrigado Juliette, como tem sido importante essa troca franca e madura à nível psicanalítico com você.


Quanto ao padre Coulmier, revelou-me que se sente profundamente atraído por Madalena. Em se tratando de um padre, foi estranho, mas disfarcei bem, confesso que me senti uma espécie de confessor.

 

Se é difícil para mim que tenho você para conversar, imagine para ele que só tem aquelas imagens frias de pedra, madeira e gesso. Tão ricas de simbolismo religioso quanto vazias de sentimento humano.

 

Conversei longamente com ele, deixei que falasse a vontade. Disse-me que sente uma certa inveja do Sheik, por este não sofrer nenhum tipo de drama de consciência. Mas o que ele chama de “inveja do Sheik”, penso ser “desejo reprimido”.

 

Em minha análise o padre Coulmier tem sérios conflitos quanto a sua bissexualidade. A batina e os hábitos tem tentado esconder ao longo dos séculos os conflitos dessa natureza.

O problema é que o que temos reprimido ou recalcado dentro de nós, sai até mesmo pelos poros do nosso corpo. Olha só já estou falando como o Sheik-Sadí.


Por falar em desejo, meu Deus, como te desejo!
Com carinho,
Gregori.

Barbacena, 27 de outubro de 1937.


Aconteceu o que eu temia. Depois que o novo livro de Sheik-Sadí “Os 120 dias de Sodoma” foi lançado, fazendo uma clara analogia com o bacanal que é esse nosso país, a situação ficou insustentável.

 

O interventor Royer, que para mim é o verdadeiro psicopata aqui, está submetendo o Sheik a torturas atrozes nos porões do Colônia. Mesmo assim o Scheik não entregou Madalena. Dizem que ele só repete essa frase: “enfim faço jus ao meu nome!” Ninguém compreendeu o que ele quer dizer com isso, mas nós dois sabemos. Lembra-se da ficha que eu lhe enviei. Em árabe seu nome significa: “O servo do amor”. O Sheik-Sadí está sublimando seu sofrimento.


Mesmo sem a delação, Madalena é a única suspeita. Royer não a demitiu ainda, mas fez pior, hoje pela manhã a submeteu a duros açoites no pátio.

 

Ele estava bastante irado, parece que sua esposa fugiu com o arquiteto. Com toda certeza descontou todo o seu ódio em Madalena, tão jovem quanto sua esposa. Isso em psicanálise é o que chamamos de deslocamento.

 

Um dos mecanismos de defesa estudados por Anna Freud. O padre Coulmier também foi bastante humilhado. Pedi demissão esta tarde. Não suportei cenas tão dantescas como as que presenciei esta manhã.

 

 A noite farei meu relatório, conforme havia sido combinado com o Sr Ader Alves de Assis, sub-secretário de segurança do governo, mas conhecido como o homem dos “3 As” de Getúlio.

 

Só que farei o relatório em duas vias, a segunda faço questão de entregar pessoalmente à José Lourenço, um repórter amigo meu aqui da capital.

 

Amanhã cedo, despacho a papelada para o Rio e sigo direto para Belo Horizonte, vou tentar pegar o primeiro ônibus. Como cidadão, sinto que tenho o dever de denunciar o pungente retrato de abandono e horror ao qual fui testemunha ocular.

 
Feito isso, aí sim, minha doce e querida Juli, finalmente voltarei para seus braços, em paz comigo.
Gregori,

Belo Horizonte, 30 de outubro de 1937.
Juliette,
Vivemos uma noite de São Bartolomeu no Colônia às vésperas da minha partida. Mas não se preocupe, esta carta é a maior prova de que estou bem.


Houve um incêndio horrível no Pavilhão Afonso Pena. Na confusão, muitas pessoas morreram; pisoteadas umas, queimadas outras. Madalena foi encontrada morta pelo padre Coulmier. Teve sua língua arrancada e foi jogada dentro do tanque onde se deixa os lençóis de molho.


Eu estava fazendo meu relatório na hora que tudo começou. Meu quarto ficava do lado oposto deste pavilhão, quando ouvi os barulhos corri pra lá. Consegui ajudar muitas pessoas, mas infelizmente não cheguei a tempo para socorrer Madalena e o Sheik-Sadí.


O Sheik foi encontrado morto dentro de sua cela, que ficava em outro pavilhão, com um crucifixo enfiado na garganta.

 

Antes de morrer deixou algo escrito com suas próprias fezes na parede. Pela manhã, voltei lá e tomei nota do que me pareceu uma letra de música.


Ô seu Manoel, tenha compaixão Tira nós tudo desta prisão Estamos todos de azulão Lavando o pátio de pé no chão Lá vem a bóia do pessoal Arroz cru e feijão sem sal E mais atrás vem o macarrão Parece cola de colar bolão Depois vem a sobremesa Banana podre em cima da mesa E logo atrás as funcionárias Que são umas putas mais ordinárias.


Deixei o padre Coulmier completamente transtornado. Uma parte dele foi destruída com suas perdas.

 

O Sheik diria: “A loucura cura”. Quando não suportamos a realidade cingimos com ela.


A polícia deu o caso por encerrado. No relatório consta que o incêndio foi provocado por um interno em surto psicótico e que o Sheik-Sadí se suicidou.

 

Royer, o interventor federal não estava na hora do incêndio. Um álibi perfeito. Tenho, particularmente, uma versão bem diferente da oficial. Fiquei em Barbacena mais este dia e a noite segui para Belo Horizonte. Não conseguiria passar mais uma noite naquele lugar, além disso, senti medo de estar na lista dos que deveriam ser eliminados pelas forças de repressão. De qualquer modo irei acrescentar este “incidente” em meu relatório. Espero que a história de Sheiki-Sadí, Madalena e do padre Coulmier, seja contada nos jornais. Quero que se faça justiça por eles e por todos aqueles que passaram e ainda terão que passar pelos porões da loucura.desta sucursal do inferno, cuja matriz é o próprio governo.
Estou voltando pra casa, enfim.
Gregori.

 


Contador de Visitas

Visualizações de Conteúdo : Contador de visitas

Sites externos:

Blog:


Facebook:


Parceiro: